TESTICULADO-FEMININO

existem coisas na nossa vida que ficam pra sempre, acredito eu. o máximo que se pode fazer é adormecê-las. traumas são um deles. na vibe de exterminar essas emoções de um passado-presente, me envolvo em denunciar abusos para minha corpa testiculada-feminina.

CRONOLOGIA DE DELAÇÃO: 


2000
lembro de estar em casa, brincando no quintal com um amigo do meu irmão, mais velho que eu alguns anos, colocou pau pra fora assim, do nada e pediu pra que eu alisasse. na rua, me chamava de viadinho.

2001
brincando de boneca, escondida, do lado externo de casa, um amigo da família também me mostrou o pau. percebeu que minha irmã biológica tinha entrado pra almoçar, não esperou muito tempo pra me encurralar no canto e colocar a neca pra fora. ele era mais velho que meu irmão biológico. e meu irmão biológico é mais velho que eu 6 anos.

2002
um homem se aproximou de mim, da minha família. num piscar de olhos, conquistou todo mundo. honesto, trabalhador. esse cara não tinha nenhum pecado, conhecidíssimo no bairro inteiro. figura simpatizante. uma vez me contou que seria padre. ele me presenteava com doces, brinquedos, passeios e insistia para que eu dormisse em sua casa todo o tempo. minha mãe nunca teve coragem de deixar eu ir. lembro que esse cara me prometeu até mesada. todo dia dez do mês ele me daria uma quantia de dinheiro. contei pra minha mãe feliz, foi daí que ela começou a desconfiar. na minha ausência, ela conversou com ele e disse não.

esse cara me alisava, me fazia carinho. me sentia suja perto dele. muitas passadas de mãos. eu não entendia muita coisa, só sentia meu coração doer. toda vez que me encontrava, dizia que dormiria comigo. juntinho. era assim que falava. eu nunca vou esquecer de quando entrou na minha casa, se aconchegou na sala, brincou comigo e meus irmãos, e ficou simulado choro pra mim, secretamente, por eu não. poder. aceitar. dormir. juntinho. com. ele.

2003
meu irmão participava de um grupo da minha antiga igreja. esse grupo fazia alguns eventos e consequentemente, precisavam arrecadar acuer pra sustentar as despesas. eu ainda não fazia parte, mas alguém pediu para que fosse buscar uma caixa de mel na casa de um vizinho, que também fazia parte desse grupo, para entregar ao meu irmão. esse vizinho é o mesmo homem de 2001. chegando lá, estava com sua irmã, que tinha mais ou menos a mesma idade dele.
eu e minha irmã biológica, tínhamos uma brincadeira muito divertida com a irmã desse cara. e enquanto eu esperava ele catar as caixas pra me entregar, brinquei com ela, a irmã dele. ela foi pra rua, estava de saída. eu continuei esperando. ele resolveu fazer essa brincadeira comigo, disse que não. na hora, já estava amedrontada e aquela sensação de culpa instalada com sucesso.
só sei que ele me enrolou cerca de 25 a 40 minutos. já estava dando anoitecendo, precisava voltar (pra quem não sabe, os adventistas fazem um culto durante o por do sol, de sexta pra sábado e de sábado pra domingo – muito bruxinhos, sim). e permiti que ele brincasse comigo, pois precisava voltar com a caixa de mel. e não demorou muito pro jogo desenrolar e ele pegar minhas mãos e levar pro pinto dele, sobrevindo seu corpo nojento no meu. ainda sinto as mesmas sensações quando chego perto de homens que se assemelham a feição dele. empurrei-o e sai correndo. e veio atrás de mim, tentando contornar a história. e contornou. quem acredita na criança? e pior, quem acredita na criança viada? criança com espírito ruim, criança infame, criança com demônio, criança com pomba-gira? na criança feminina-testiculada?

2004
mais um amigo da família. esse cara conhecemos quando moramos em Macaé-RJ. final do ano, voltamos para o ES. ele veio junto, passar uns dias do verão na nossa casa. dizia que eu era bonito, que parecia menina, que se fosse menina, ficava comigo. onze anos. ele não tinha menos que 20 anos. queria que fizesse ele gozar dentro de um banheiro de posto de gasolina, quando fomos pra casa da minha avó. depois, na volta, tentou me comer no Morro da Pescaria, onde estávamos indo encontrar com familiares. a sorte que Guarapari é uma loucura no verão, gente pra todo lado. friend of family.

2005
o cara de 2002 retorna. foi no dia que meus pais saíram pra comprar o piso da varanda. recordo como se fosse hoje, chegando da escola, percebi a casa escura fechada, ele percebeu também. não perdeu tempo e entrou. nessa hora eu já tava me tremendo, tive a brilhante ideia de não tomar banho para, sei lá, tentar evitar o pior. nós tínhamos de entrar em casa pela cozinha. entramos e já fui fazendo questão de abrir todas as portas e janelas que e pudesse, ele tentando puxar papo. vou pra sala, sento no sofá maior, ligo a tevê e vou assistir malhação. ele, assenta-se no chão, encostado no sofá de acordo que ficou apoiado no mesmo e em mim, alisando com suas mãos porcas as minhas pernas e meu genital. eu fico imóvel, mal respiro. ele ficou ali mesmo, despreocupado, beijando minha varinha por cima da bermuda do colégio.




passei muitos anos da vida lidando com a culpa. culpas que, por exemplo, eu não tive consciência. muitos traumas, muitos medos. hoje em dia, não estou curada, pois como disse, não acredito em cura. as coisas se amenizaram com o tempo, dá pra você enganar, adormecer. eu me entorpeço. a vida é cruel demais. só que agora to bem tranquila do meu castelo, esperando o mundo diluir.

grito esses insultos como maneira de anestesiar à áurea manchada. e alarme, para anunciar que crianças testiculadas-femininas também são vítimas de abuso sexual, psicológico, emocional e estupros. não sabemos ainda se é na mesma proporção que crianças testiculadas-masculinas, pois nós somos dadas como meninos ao nascermos e passamos um bom tempo extinguidas.

pra esse ritual, escolhi folhas de aroeira. uma planta medicinal que conheço bem e venho fazendo uso algum tempo, seja pra remédio ou pra magia. ela é muito para consumida em banhos, que funciona como uma qualidade de descarrego. serve tanto para combater problemas que prejudicam o corpo, quanto a alma.

o chá da aroeira possui infinitas propriedades, sendo elas, anti-inflamatória e diurética. e pesquisando sobre a erva, descobri que no Peru, a Aroeira é usada para criar vinagre e bebidas alcoólicas, depois de passarem por procedimento de fermentação. inclusive, antisséptico de ação bactericida. tudo que precisava pra desenvolver essa obra.

com as folhas da aroeira, faço um tônico, onde depois de identificar os hematomas causados pelos abusos de um passado presente, onde meu corpo ainda se enrijece ou se assusta ao ser tocado. crio curativos nas regiões mais afetadas, usando ataduras e borrifo por cima delas, para mais rápida cicatrização das lesões. e com a mesma loção, retiro as compressas, tentando não tocá-las o máximo possível.

mas uma vez, volto a inquirir: quem acredita na criança viada?


Comentários